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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Zanga de namorados1

No café da manhã uma discreta zanga de namorados. Na mútua troca de palavras, de repente, ela disse:
- Tens que comparar como hoje vês isso e como viste na altura… Adeus!!!, e saiu.

Ele ficou quieto e com "ar amarrotado":


Fiquei a pensar pois a frase era interessante. 

Na verdade, as memórias não são "fotografias mentais" do que acontece mas sim "fotografias mentais retocadas pelos significados que lhes damos". 
Estes significados dependem do ponto de vista interpretativo utilizado quando foram registadas e esse ponto de vista vai variar, muito ou pouco, com as vivências que vamos tendo.

Dizer "Eu dantes era muito parvo" significa apenas que a perspectiva pessoal sobre o registado, as "recordações", se alterou.  
O mais interessante é que o conteúdo desse "recuerdo" pode ser reformulado por uma espécie de retoque positivo ou negativo sobre o acontecido, do tipo [… não, não, …a bofetada foi apenas uma carícia mais intensa…] ou...

No julgamento, dizia o marido:
- …mas eu, ao chegar a casa, atiro-lhe sempre uma flor…
Dizia a mulher:
-…pois, mas é um cacto com vaso...

In brevis, as recordações são apenas o resultado de perspectivas de vida incidentes sobre registos arquivados, parcializando, embelezando, acrescentando, etc.

Ao contrário do computador em que os documentos não se transformam ao mudar a estrutura WinXP para Win7, Win10, etc, no cérebro humano as memórias arquivadas alteram-se com a estrutura ateia, cristã ou budista posterior ou até, simplesmente, com a mudança de apaixonado para indiferente em que, por ex., carícias desejadas passam a carícias indesejadas. 

Como exemplo frequente são os mesmos acontecimentos serem recordados diferentemente consoante se está em pré-casamento (só detalhes positivos) ou pré-divórcio (só detalhes negativos) apesar de ambos terem sido reais.

No ser humano os processos cognitivos são sempre "entrançados" com processos afectivos e estes nas conversas amorosas são os dominantes.

No pensar humano o constante entrançar de cognitivo-afectivo origina uma meditação budista bastante interessante. Ela intensifica a comparação de mudanças de perspectivas e de conteúdos ao longo do tempo de vida. A sugestão citada no início deste post [...comparar como se vê hoje e como se viu na altura] expressa bem a sua essência base. 

Quando há muitos anos tive conhecimento desta técnica e não tendo paciência para uma rotina de "diários" resolvi que, em períodos "mutantes" da minha vida, escreveria cartas aos meus filhos que na época eram ainda crianças e/ou adolescentes. 
A ideia era fechá-las em envelopes, não as tornar a ler, deixar passar muitos anos e entregá-las quando já fossem homens "vincados" pelos detalhes da vida.  

Todavia as perspectivas evoluem e, mais tarde, resolvi abrir uma das 14 cartas existentes, tornei a ler o que tinha escrito e depois de muito "conversar com os meus botões" resolvi, sem as abrir, destruir todas. 

Foi uma conclusão simples, decidi "não quero saber", o passado fica no passado. 
Os meus filhos construirão o seu passado com seus acontecimentos e suas perspectivas, não lhes deixarei mais marcas do que aquelas que já deixei numa época em que era diferente do que sou hoje. 

Gosto de conversar com eles sobre esse passado mas isso é diferente, sou EU a falar hoje dos "ontens" quando EU era diferente. Às vezes sei a diferença, outras vezes não. Portanto, essas conversas não são sobre o passado são sobre o presente a olhar para o passado. 

Paradoxalmente, só guardei a única carta que abri, ainda não descobri porquê, mas o seu destino está decidido é para rasgar, ninguém a vai ler. Até lá, está guardada em sítio que só eu encontro, um doc. com password de código dentro de código.

Para terminar, uma conclusão sobre a zanga de namorados do início deste post. A sua conversa estava cheia de diálogo mas tinha uma comunicação nula. 

Comunicação é troca de significados não é troca de palavras, as palavras só servem para inserir significados. A inserção obriga a possuir um dicionário tradutor de significados, se não existe a comunicação é nula, se é mal traduzido é des-comunicação:


Uma conversa exige um dialecto cognitivo e um dialecto afectivo. Pode-se conversar no mesmo idioma cognitivo mas com dialectos afectivos diferentes. Numa conversa comercial o dialecto cognitivo tem preponderância (ambos falam chinês), mas numa conversa amorosa a preponderância está no dialecto afectivo pois se, para um significa respeito e para outro é desprezo, o conflito e a zanga aparecem.

Aquele par de namorados tinha dialectos afectivos diferentes, entendiam-se nas palavras mas diferiam nos significados afectivos. Ele transmitia sinais de grande emotividade positiva que não era recebida e ela mostrava a sua frustação em emotividade negativa que não era percebida. Era como se, afectivamente, um conversasse em chinês e o outro em esquimó.

Os padrões de dialecto afectivo aprendido na infância não tinham inserido os seus dicionários. Possivelmente no início do namoro o tradutor universal das hormonas sexuais tinham tornado desnecessário essa necessidade, tudo significava o mesmo,… mas então a conversa era outra, agora o divórcio aproximava-se e era preciso instalar os dicionários afectivos.

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